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Saiba mais sobre o enigmático conceito que relaciona a Estética e a Robótica à Psicologia, sua relevância científica e o impacto causado na interação humano-máquina (imagem: iStock). Saiba mais sobre o enigmático conceito que relaciona a Estética e a Robótica à Psicologia, sua relevância científica e o impacto causado na interação humano-máquina (imagem: iStock).
Uncanny Valley: conheça o fenômeno do “vale da estranheza”
  • Artigo
  • Ciências Sociais Aplicadas, Tecnologia
  • 18/08/2023
  • DotLib, Enciclopédia Britannica, Estética, Psicologia, Robótica, Uncanny Valley, Vale da estranheza

O conceito de Uncanny Valley tem intrigado mentes curiosas desde sua concepção, há 50 anos, trazendo à tona questionamentos sobre a relação complexa entre humanos e máquinas. Com a evolução da robótica, das animações 3D e com as crescentes tentativas de criação de uma realidade virtual, o conceito — cuja tradução significa “vale da estranheza” — voltou a ser debatido por especialistas e aficionados por tecnologia.

Neste artigo, mergulharemos na história do Uncanny Valley, em seus fundamentos científicos, exemplos contemporâneos e entenderemos como as tecnologias de ponta estão redefinindo nossa interação com as máquinas.

Origens e mentores

Uncanny Valley: criador do conceito de vale da estranheza Masahiro Mori

Masahiro Mori, criador do conceito de Uncanny Valley, aos 85 anos (imagem: Norri Kageki / ResearchGate).

O conceito de “Vale da Estranheza” foi introduzido pela primeira vez pelo cientista, engenheiro e professor de robótica japonês Masahiro Mori em seu livro Bukimi No Tani Genshō, que traduzido literalmente do japonês significa “Fenômeno do Vale Misterioso”. Nesta obra, Mori registrou suas observações a respeito da interação homem-máquina partindo do desenvolvimento de robôs humanoides.

Ele percebeu que, à medida que a semelhança entre um robô e um ser humano se tornava mais próxima, nossas emoções positivas em relação ao robô aumentavam, mas apenas até certo ponto. Quando a semelhança se aproximava muito da perfeição, ocorria uma queda acentuada na aceitação, gerando uma sensação perturbadora. Mori provocou reflexões profundas sobre a psicologia por trás dessa reação.

O nome “Uncanny Valley” surgiu em 1978, no livro “Robots: Fact, Fiction, and Prediction”, da escritora britânica especializada em artes de computação Jasia Reichardt, que citou a obra de Mori e traduziu literalmente o termo do japonês para o inglês. Com o passar dos anos, o termo criou uma relação não intencional com o conceito de “estranheza” na Psicanálise abordado pelo psiquiatra alemão Ernst Jentsch em seu ensaio de 1906, “Sobre a psicologia do estranho”, e por Sigmund Freud em “O estranho”, de 1906.

O que é Uncanny Valley

O Uncanny Valley é um conceito hipotético da Estética (um ramo da Filosofia), com elementos da Robótica, do Design e da Psicologia, que aborda o ponto em que a semelhança entre um objeto artificial e um ser humano se torna quase indistinguível, mas pequenas discrepâncias geram uma aversão instintiva. Pesquisas psicológicas indicam que nosso cérebro está programado para reconhecer e responder a faces humanas, e mesmo pequenas imperfeições podem desencadear desconforto.

Desde sua origem, esse fenômeno está relacionado à robótica, especialmente ao desenvolvimento de humanoides, robôs conhecidos por simularem os humanos em aparência física e em algumas capacidades cognitivas. Mas também se relaciona, por exemplo, com animações gráficas em 3D já vistas em desenhos e jogos. Outros conceitos e tecnologias, como a realidade virtual e a Inteligência Artificial (IA), estão levando a experiência do Uncanny Valley a um novo patamar, explorando a interação entre humanos e ambientes simulados.

Como a Ciência explica o estranhamento

A neurociência por trás do Uncanny Valley revela que a amígdala cerebral, responsável por processar emoções, reage fortemente a estímulos quase humanos, mas não completamente autênticos. Isso desencadeia uma resposta emocional ambígua, resultando na sensação de estranheza. O estudo dessas reações tem implicações profundas na psicologia humana e interação humano-máquina.

Uncanny Valley:

 

Gráfico que, de acordo com o conceito de Uncanny Valley, mostra a oscilação da reação emocional de um humano diante de figuras humanoides, ou seja, que são humanas ou têm alguma semelhança com a aparência humana (imagem: Dot.Lib).

Além dos fatores neurocientíficos, a explicação científica para o fenômeno do Uncanny Valley também envolve uma combinação de fatores psicológicos. A seguir, confira algumas das teorias que têm sido propostas para explicar a sensação de estranhamento:

1) Teoria da percepção imitativa: esta teoria sugere que o estranhamento ocorre porque o cérebro humano é altamente sensível à percepção de sinais sociais e emocionais. Quando um objeto ou representação está perto de se assemelhar a um ser humano real, o cérebro espera que ele exiba as mesmas expressões emocionais e comportamentos sociais que um ser humano real exibiria. Qualquer desvio dessas expectativas pode levar a uma sensação de estranheza.

2) Processamento cognitivo: outra teoria sugere que o cérebro humano está constantemente avaliando a semelhança entre estímulos visuais e representações mentais preexistentes. Quando um objeto está no “vale da estranheza”, ele pode se assemelhar a um humano real o suficiente para ativar essas representações mentais, mas as diferenças sutis podem resultar em um conflito cognitivo. Isso pode levar a sentimentos de incerteza e desconforto.

3) Evolução e sobrevivência: alguns pesquisadores argumentam que o fenômeno do Uncanny Valley pode estar enraizado em nossa espécie. Durante a evolução, os seres humanos desenvolveram a capacidade de identificar rapidamente outros seres humanos e determinar se eram amigos ou ameaças. Quando um objeto se assemelha quase perfeitamente a um humano, mas não é autêntico, nosso cérebro pode reagir de forma negativa, associando-o a um potencial risco.

4) Hipótese da ambiguidade: Essa teoria sugere que a sensação de estranheza ocorre quando a representação está em uma zona ambígua entre humano e não humano. O cérebro pode lutar para categorizar o objeto de maneira clara, levando ao desconforto.

É importante observar que essas teorias não são mutuamente exclusivas e podem interagir de maneira complexa para criar a sensação de estranhamento dentro do conceito de Uncanny Valley. Cientistas continuam a explorar esses mecanismos subjacentes para entender melhor por que esse fenômeno ocorre e como ele pode ser mitigado em diversas aplicações, como animação por computador, design de robôs e realidade virtual.

Exemplos contemporâneos

Ainda que o Uncanny Valley não esteja restrito a estas aplicações, confira alguns exemplos de encontros com o conceito na robótica e nas animações de filmes e jogos:

Robótica

Uncanny Valley: um exemplar do robô android Repliee Q1

Exemplar do robô androide Repliee Q1 (imagem: Andy Rain/EPA/Shutterstock).

A robótica também enfrenta o dilema de estar no abismo entre o real e o simulado, representado pelos robôs humanoides. Como o próprio nome diz, são máquinas com características que lembram as humanas. Ou seja, possuem uma face com dois olhos, um nariz e uma boca dispostos na mesma ordem do rosto humano, além de terem dois braços e pernas, serem bípedes e estarem eretos. Os robôs humanoides que simulam esteticamente o ser humano de modo cada vez mais realista são os androides, cujos modelos mais atuais são capazes de processar e simular a comunicação humana além de realizar algumas tarefas.

Um dos androides mais famosos por sua aparência humana quase realista é o modelo Repliee Q1, que simula uma mulher. Criada em 2005 pelos cientistas da Universidade de Osaka, no Japão, a robô foi desenvolvida com material que imita as texturas humanas, como as presentes na pele e no cabelo. Ela também contava com vários sensores e motores para simular os movimentos corporais de um humano, desde um piscar de olhos até a gesticulação com os braços e mãos, e para responder ao toque de acordo com a pressão aplicada. Mas algumas de suas imperfeições, como os atrasos entre sons e movimentos emitidos pelo robô, causaram estranheza à época.

Filmes

Uncanny Valley: personagens do filme Cats

Casal do filme "Cats" (imagem: Reprodução).

Os filmes usufruíram e continuam a usufruir da evolução da computação gráfica, do design e das demais tecnologias de imagem. Mas nem sempre o resultado é agradável aos olhos e chega a dividir opiniões. Este foi o caso de “O Expresso Polar” (2004), com Tom Hanks, que foi uma das primeiras animações 3D feitas 100% em captura digital. Porém, justamente por ser a pioneira, a obra gerou tanto reações positivas por sua evolução gráfica — se comparada às animações anteriores — quanto negativas ao tentar simular aparência, reações e movimentos corporais humanos em seus personagens.   

Um exemplo mais atual é o musical “Cats” (2019), com Jennifer Hudson, Judy Dench, Taylor Swift, Idris Elba e outros grandes atores. O filme é um claro exemplo de “vale da estranheza” ao mesclar corpos de gatos aos rostos e movimentos corporais de seus intérpretes humanos. Por esse e outros motivos, o longa foi considerado um dos piores daquele ano e da história do cinema tanto pelo público quanto pela crítica especializada, além de ter dado um prejuízo de US$ 113 milhões à produtora.

Jogos

Uncanny Valley: os monstros de Silent Hill, Pyramid Head, Bubble Head Nurses e Lying Figure

Monstros de Silent Hill da direita para a esquerda: Pyramid Head, Bubble Head Nurses e Lying Figure (imagens: Reprodução).

Assim como nos filmes, as representações visuais quase realistas (mas imperfeitas), também geram incômodo no mundo dos gamers. Em alguns casos, como nos gêneros de terror/horror, o Uncanny Valley é um recurso estético propositalmente usado para fazer com que o jogador fique imerso no ambiente sombrio e aterrorizante proposto pela história do jogo.

Um dos games mais famosos por isso é a bem-sucedida franquia “Silent Hill”, em especial o “Silent Hill 2”, que usou e abusou do vale da estranheza na construção dos seus personagens. Muitos deles são criaturas humanoides monstruosas que simbolizam algum sentimento ou lembrança dos personagens humanos, como os famosos Pyramid Head, Bubble Head Nurses e Lying Figure.

Tecnologias atuais e o futuro do Uncanny Valley

À medida que a tecnologia avança, novas dimensões do Uncanny Valley emergem. Tecnologias como o Unreal Engine 5 estão revolucionando a criação de mundos virtuais hiper-realistas, enquanto a IA está aprimorando a capacidade das máquinas de interagir e aprender com os humanos. A realidade virtual e o crescente metaverso levam a uma maior exploração do conceito, desafiando os limites da aceitação humana e redefinindo a experiência digital.

O Uncanny Valley continua a ser uma fronteira intrigante na interação humano-máquina, inspirando inovação e reflexão sobre nossa relação com a tecnologia. Enquanto exploramos esse “vale da estranheza”, somos convidados a compreender melhor nossas próprias emoções e percepções, pavimentando o caminho para um futuro no qual a colaboração harmoniosa entre humanos e máquinas é mais do que uma possibilidade, é uma realidade em constante evolução.

Para se aprofundar no assunto

Uncanny Valley: logo da editora Britannica

Imagem: Britannica / Dot.Lib.

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